
Após país registrar mais de 3.000 mortos por Covid-19, o Ministério da Saúde inseriu novos campos obrigatórios na ficha dos pacientes no Sistema de Informação de Vigilância Epidemiológica da Gripe (Sivep-Gripe) para dificultar seu preenchimento; medida deve diminuir drasticamente os registros de óbitos
Na terça-feira (23), dia em que o Brasil bateu novamente o recorde de mortes por Covid-19 confirmadas em 24 horas, o Ministério da Saúde alterou a ficha dos pacientes no Sistema de Informação de Vigilância Epidemiológica da Gripe (Sivep-Gripe), segundo técnicos responsáveis por preencher diariamente as atualizações sobre novos óbitos confirmados pela doença.
São Paulo diz que mudança impactou contagem de mortes: foram 281 em 24 horas
A TV Globo procurou o Ministério da Saúde para confirmar se a mudança foi combinada com as secretarias estaduais e municipais, mas não recebeu retorno até a mais recente atualização desta reportagem.
A nova ficha distribuída para as vigilâncias de saúde municipais e estaduais incluiu mudanças em uma série de campos, com inclusão de novos tipos de informações, como se o paciente pertence a uma comunidade tradicional, e a exclusão de outras, como o histórico de viagem internacional.
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No entanto, outras alterações devem afetar mais diretamente o trabalho de preenchimento do sistema, como a obrigatoriedade de informar o número do Cartão Nacional de Saúde (Cartão SUS), se o paciente é brasileiro ou estrangeiro e se já foi vacinado contra a Covid-19. Todos esses campos inexistiam na versão anterior da ficha, em utilização desde julho de 2020.
Além disso, o campo do número do CPF, que antes era considerado “essencial”, também passa a ser obrigatório. Caso o paciente não tenha o CPF em mãos, é obrigatório preencher o Cartão Nacional do SUS. A única exceção para essa obrigatoriedade é para os pacientes declarados indígenas na ficha.
Instabilidade na terça-feira
Nesta quarta-feira (24), pelo menos dois governos estaduais já relataram que houve queda na notificação de novas mortes devido às mudanças no sistema.
Em São Paulo, o governo afirmou que “a medida — segundo o Estado — pegou os municípios de surpresa, fazendo com que muitas cidades não conseguissem registrar todos os óbitos no sistema nacional oficial. Além disso, muitas cidades reportaram à Secretaria de Estado da Saúde instabilidade do sistema desde a tarde de ontem, também dificultando a inserção de dados”.
Na terça, São Paulo confirmou 1.021 óbitos, principalmente por causa do represamento no fim de semana, que é mais alto do que nos dias úteis. Nesta quarta, porém, foram 281 óbitos confirmados em 24 horas, o número mais baixo entre as quartas-feiras desde 17 de fevereiro, e bem mais baixo do que a média móvel registrada na terça, de 532 mortes diárias. Com a queda na produtividade, a média também caiu para 484.
Em Mato Grosso do Sul, o secretário estadual de Saúde, Geraldo Resende, afirmou que as 20 novas mortes confirmadas em 24 horas não representam a “realidade”.
“Nós estamos tendo muito mais óbitos que esses anunciados hoje. Mas é porque o sistema, chamado Sivep, está com oscilação, está dificultando a inserção de dados, e certamente amanhã nós vamos ter um número elástico de óbitos, já que a nossa média móvel já ultrapassou a 30 óbitos por dia. E a gente sabe que esse número de hoje está a menor, do que o que aconteceu nos últimos dias por essa oscilação do sistema do Ministério da Saúde.” – Geraldo Resende, secretário de Saúde de MS
Impacto na contagem de mortes
O Sivep-Gripe é o sistema oficial onde todas as novas hospitalizações por Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG) devem ser compulsoriamente notificadas desde 2009. Em 2020, com a pandemia do novo coronavírus, ele passou a ser usado também como a fonte oficial das mortes confirmadas por Covid-19.
A ficha do sistema é válida para todos os hospitais e vigilâncias municipais do país. Conforme o paciente evolui e novas informações são obtidas, como o resultado de exames, a necessidade de internação em UTI ou de ventilação mecânica, além da data da alta ou do óbito, a ficha dele vai sendo atualizada.
Segundo técnicos que são usuários do Sivep consultados pela equipe de reportagem, em mudanças anteriores da ficha, não houve necessidade de preenchimento retroativo de novos campos para pacientes que já constavam no sistema.
Os dois principais impactos da nova ficha, segundo eles, foram a falta de aviso prévio por parte do Ministério da Saúde e as secretarias, como ocorreu em julho passado, e a exigência de preenchimento obrigatório de novos campos, que pode aumentar o atraso entre a ocorrência das mortes e o registro delas no sistema, para que constem no balanço oficial diário.
Marcelo Gomes, coordenador do InfoGripe, plataforma da Fiocruz que desde antes da pandemia já usava o Sivep-Gripe para rastrear os casos de SRAG no Brasil, explica que a mudança vai afetar no atraso de notificação de casos e de óbitos.
Segundo ele, “é uma mudança que facilita a limpeza de duplicidades e identificação de casos suspeitos de reinfecção, mas o impacto na ponta é muito grande por conta da falta de acesso fácil ao CPF e CNS de todos os pacientes internados”.
Ele explica que “diversos pacientes buscam atendimento apenas com RG, tornando a ausência de acesso ao CPF importante. Nesses casos, torna-se necessário o agente de saúde pesquisar o CNS do paciente, caso já tenha sido cadastrado ou efetuar o cadastro do CNS caso contrário”.
Para Gomes, a mudança “tende a atrasar ainda mais o registro, aumenta a carga de trabalho, por ter que buscar o CNS do paciente que não apresentar CPF, e corre-se o risco de perda de registros por conta disso”.